terça-feira, novembro 01, 2005

Uma inépcia emocional diferente

Gary enfurecia a sua noiva, Ellen, porque, embora fosse um homem inteligente e atencioso, e um brilhante cirurgião, era emocionalmente insípido, totalmente insensível a toda e qualquer manifestação de sentimento. Embora soubesse falar eloquentemente a respeito de ciência ou arte, quando se tratava dos seus sentimentos - mesmo em relação a Ellen - remetia-se ao silêncio. Por mais que a noiva se esforçasse por arrancar-lhe o mais pequeno sinal de emoção, Gary permanecia impassível, alheado. "Não expresso naturalmente os meus sentimentos", disse ao terapeuta que finalmente consultou, por insistância de Ellen. No respeitante à vida emocional, acrescentou, "fico sem saber o que dizer; não tenho sentimentos fortes, positivos ou negativos". Ellen não era única a sentir-se frustrada por esta impassividade de Gary; conforme ele próprio confidenciou ao terapeuta, era incapaz de falar a respeito dos seus sentimentos fosse com quem fosse. A razão: nem sequer ele próprio sabia o que sentia. Tanto quanto pudesse dizer, não tinha fúrias, nem tristezas, nem alegrias.
Facto:
Alexitímico - aquele que parece não ter sentimentos, embora isso possivelmente se deva a uma incapacidade para exprimir emoção e não a uma ausência de emoções propriamente dita.
Imaginem. Poder escolher responder "não" aos sentimentos. Não à ira, não à tristeza, não ao medo.
O quadro clínico da Alexitimia inclui a dificuldade em descrever sentimentos - os próprios e os de terceiros - e um vocabulário emocional extensivamente limitado.
A inépcia incompleta desenhada pela Alexitimia parece-me quase perfeita. Entendo, dentro do dianamente possível, o handicap de dizer não ao sentir. Não ao prazer, não ao amor, não à surpresa. Uma grande nega às motivações para se ser. Mas além disso. Além do socialmente desejável. Se o ser humano nunca poderá libertar-se do sentir, independentemente da sua habilidade para o entender e exteriorizar, a possibilidade de o não mostrar aos outros seria uma vantagem preciosa relativamente ao resto do mundo. O criminoso perfeito. Nos momentos em que sentir poderá ser visto como uma fraqueza, o alexitímico ganha aos pontos. Efectivamente sente, mas se não entende porque sente, sofrerá*? Além da pessoa aborrecida que se torna aos olhos dos outros - defeito irrisório quando se fala num criminoso, acho eu - o alexitímico ganha tempo e sacode problemas ao não descriminar os seus sentimentos e os dos outros. Pode matar, ele não entenderá o que chamamos de remorso e culpa. Pode torturar, ele não saberá explicar que o que poderá mexer dentro dele é pena e compaixão. Está livre da consciência. Intratável à luz da psicanálise. Imunes de qualquer provocação exterior. É o tipo a quem chamamos filho-da-puta e que não precisa do disfarce da auto-confiança. Porque é que ele haveria de se importar?
Acredito que alguns quadros clínicos possam ser pistas para a auto-superação, para uma melhor adaptação ao que fizemos ao mundo em que vivemos. Para mim, a imperfeição da Alexitimia está no facto de ainda não nos permitir não sentir de todo. Se as emoções têm um papel vital no que poderemos chamar a nossa sobrevivência, em muito nos matamos, a todo o momento, por delas não nos conseguirmos alhear. Muitas vezes penso que apenas partilhamos uma inépcia emocional diferente dos alexitímicos.
* Mais Catarse: tenho uma profunda incapacidade para distinguir, nos meus momentos de exorcismo, sentir e sofrer.