O meu dia
Não joguei no Euromilhões. Encharquei-me toda. Enfiei uma das botas de camurça em lama. Deixei cair o cartão de picar o ponto numa poça de água. Passei o dia inteiro com uma comichão muito particular. Tive fome desde que almocei. O meu telemóvel tocou brilhantemente uma única vez durante o dia. Ouvi dizer coisas como: "sabe a rata", "vaca de merda", "se ela não fosse feia e gorda até a ajudava" o dia todo, sabendo que, muito provavelmente, quando virasse costas, o alvo dos insultos seria eu. Houve stress no gabinete o dia todo, porque um deles bateu com o carro à hora de almoço e tive de ouvir a descrição dos acontecimento uma porção de vezes. Estranhei quase toda a gente, como de costume. Estou cada vez mais perto de tirar o quase da frase de sempre.
Apetece-me fazer algo diferente. Apetece-me fazer alguma coisa, para variar. Não quero aprender a viver com as coisas. Não quero adaptar-me ao passado. Não quero ouvir as conversas, nem sorrir às estupidezes que ouço. Não quero ter nada a ver com isto que se faz por aqui.
Discuti sobre as merdas que os gajos dizem sobre as gajas. Tou farta dos ideais de mulher, daquilo que tenho de esconder para me proteger, porque preciso de viver social e discretamente neste mundo. Tou farta de os ouvir a criticar algumas mulheres, como se merecessem só gajas boas. É como se o mundo estivesse dividido em três partes: homens, mulheres boas e mulheres más. É como se os homens existissem para serem felizes, as mulheres boas existissem para fazerem os homens felizes e as mulheres más existissem para fazer as mulheres boas felizes. É como se só as mulheres tivessem de ser boas, bonitas, inteligentes e simpáticas. E a eles lhes bastasse existir, com todos os direitos incluídos, nomeadamente, aquela gaja podre de boa.
Hoje, no trabalho, a propósito de um anúncio qualquer que pedia mulheres perfeitas, ouvi um colega dizer: "Isso não existe. Se são boas, são burras. E, se são boas e inteligentes, não são simpáticas. Falta sempre qualquer coisa." Ah, pois falta. Se não for nas mulheres, é n(o)'outro lado qualquer. Eu serei o quê, e não serei o quê, no seu ver?
Tive mais frio do que calor, durante o dia. Fui 4 vezes ao wc desde que acordei. Pensei em falar à Adriana sobre a minha comichão por mail, mas a diana-paranóide não deixou - eles podem andar a ver os mails. Pensei que sou demasiado fria para as pessoas que me são mais próximas, e que sou demasiado gentil com quem menos me conhece. Relembrei que quando faço o contrário, as coisas também não correm bem.
Vi um miúdo, com pouco mais de 10 anos a sprayar um aerossol qualquer e a acender fogo com um isqueiro, em plena passadeira, em plena rua, tal e qual aquele homem do circo. Pensei o habitual: "Se fosse meu filho...", sabendo que isso não é coisa que se diga, uma vez que não sou um bom exemplo nem como dona de uma gata.
Deitei fora as pulseiras da Queima, da Latada e daquele Verão-sei-lá-de-que-ano. Cortei-as com tanto prazer, que senti quase uma segunda pele a nascer. Como se fosse uma nova oportunidade.
Alguma coisa tenho de fazer diferente, para poder vir a ser diferente.
Ainda bem que não joguei no Euromilhões. Quero esquecer aquela chave, cheia de números com significados especiais. Valem zero para mim agora.
Então Adeus.
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